O fim do padrão dólar

A nova gestão norte-americana, comandada por Joe Biden, tem se mostrado tentada a transformar os Estados Unidos nos quatro anos que tem pela frente. A ideia de fazer a América grande novamente permanece no centro das discussões políticas americanas, mas é claro, agora com nova roupagem.

Um dos empreendimentos sobre o qual o governo Biden poderia avançar é o de acabar com o padrão dólar, ou seja, agir propositalmente de forma induzir a perda do valor do dólar americano no mercado internacional.

Um dos argumentos em discussão é o de que: o que antes se configurava como privilégio – esse de ter a moeda padrão internacional – agora tende a trazer importantes impedimentos para que os Estados Unidos sejam capazes de competir com os países do sudeste asiático.

É claro que tem muita água para passar por debaixo desta ponte, e muitas análises deste tema são precipitadas, como foram aquelas que previam um forte aumento da inflação resultante das políticas de estímulo monetário aplicadas a partir da crise de 2008. Mas, apesar da ansiedade dos analistas, é certo que mudanças muito importantes estão a caminho.

Acompanhe nossa análise a seguir.

O privilégio de ter a moeda padrão

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o dólar tornou-se a moeda padrão para transações entre os mais variados países, seja nas transações envolvendo a compra e a venda de mercadorias, seja para a transações ligadas a ativos financeiros.

A despeito da tentativa de criação de uma moeda multilateral, como a proposta – derrotada – de Keynes com a International Clearing Union (ICU) ou como a cesta de moedas do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Special Drawing Rights (SDR), em 1969, o dólar acabou se tornando a moeda padrão no relacionamento financeiro entre os países.

O resultado disso é que hoje, passados 77 anos do Acordo de Bretton Woods, quando o dólar passou a ser a moeda padrão de ofício, cerca de 59% das reservas internacionais estão expressas em dólar americano.

Além de compor, de longe, a maior parte das reservas internacionais, o dólar confere outras vantagens aos Estados Unidos. 

Em ambientes de crise, a maioria dos países, sobretudo os classificados como “em desenvolvimento”, vêem o valor das suas moedas caírem, às vezes de forma aguda, trazendo inúmeros problemas para o governo, pessoas e empresas.

Em 2008, apesar do epicentro da crise do subprime ter sido justamente na economia norte-americana, o mercado se apressou em comprar dólares para se precaver do ambiente caótico que se formou após a quebra do Banco Lehman Brothers. 

De modo geral, como já dizia o saudoso economista brasileiro, Celso Furtado, em meados do século passado, do ponto de vista das contas externas, os países desenvolvidos gozam de ampla vantagem quando se aproxima e se concretiza um ambiente de crise.

Não para por aí. Ter a moeda padrão confere aos Estados Unidos uma outra vantagem relevante na geopolítica global. Por ser o país emissor da moeda padrão, o Federal Reserve (FED) atua indiretamente como o banco central do mundo.

Em outras palavras, a política monetária – a decisão de aumentar ou diminuir a taxa básica de juros – de países como Brasil, está condicionada ao comportamento do banco central norte-americano. Não há nenhum impedimento legal ao Banco Central do Brasil conduzir uma política monetária dissonante da empreendida pelo FED, no entanto, isso poderia significar um grave problema para as nossas contas externas.

O fardo de ter a moeda padrão

Até aqui você viu o poder que os Estados Unidos têm por ser o emissor da moeda padrão, mas estar nesta posição tem trazido alguns problemas à maior economia do mundo.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que a discussão de continuar sendo ou não o emissor da moeda padrão não é nova. No final da década de 1960 o então presidente norte-americano, Richard Nixon, estava diante deste imbróglio: permitir a desvalorização do dólar e conferir importante aumento de competitividade para as empresas dos Estados Unidos ou continuar com a política que amparava o dólar como moeda padrão internacional?

Ser o emissor da moeda padrão trouxe um relativo atraso à economia dos Estados Unidos, e isso chegou a ameaçar a sua hegemonia econômica, primeiro com o Japão e agora, com a China.

A decisão de ser ou não o país emissor parece estar escapando aos poucos das mãos dos norte-americanos. Cada vez mais vemos avanços da China, por exemplo, em questões importantes para tornar o Yuan uma moeda amplamente aceita como seus pares euro, libra, iene e dólar.

Em primeiro lugar, em novembro de 2015, após muitos anos de negociações, a China conseguiu emplacar o renminbi como uma das moedas que compõem os direitos especiais de saque do FMI, os SDR, descritos mais acima.

Outro ponto, no ano 2000 cerca de 71% das reservas estavam expressas em dólar, esse patamar caiu para 59% em 2020, o mesmo patamar registrado em 1995. Enquanto isso, a China vê o renminbi representar pela primeira vez cerca de 2,3% de todas as reservas globais. Em 2015, antes de o renminbi entrar para os SDR, esse número era de 0%.

Na verdade, de 2015 a 2020 apenas 2 das 12 moedas monitoradas pelo FMI apresentaram decrescimento na participação das reservas internacionais dos países. Dólar e Franco suíço.

Ser o país emissor requer uma constante vigilância no aumento da importância das demais divisas em detrimento do dólar.

Não se precipite

De modo geral, a perda de participação do dólar nas reservas internacionais se deu principalmente em favor do aumento da participação do renminbi, do iene e do euro. Repito, apesar da queda, as reservas em dólar ainda são quase três vezes maiores que o euro, segunda colocada com 21,2% em 2020.

Muitos estão atribuindo uma potencial perda de valor da moeda americana e um consequente desaparecimento do padrão dólar, aos vigorosos pacotes de estímulos fiscais concedidos no governo Trump e intensificados no governo Joe Biden.

Ocorre que, em 2008, no bojo da crise do subprime, muitos economistas decretaram o “fim do dólar” e projetaram uma inflação descontrolada a partir das políticas monetárias ultra expansionistas empreendidas para suavizar os efeitos da crise.

De lá pra cá, o que se viu foi a exceção virar regra. As taxas de juros dos países desenvolvidos continuam nominalmente próximas de zero e negativas quando descontamos os efeitos da inflação. A propósito, que inflação! De onde veio? Dos famosos quantitative easing – política de maciça injeção de liquidez por parte dos bancos centrais dos países desenvolvidos? Não! A inflação vista nos últimos meses tem sido majoritariamente explicada pelo aumento dos preços das commodities.

Por mais que as circunstâncias sejam singulares, continua cedo – 2008 era cedo demais – para discutir o fim do padrão dólar na economia mundial. Mais cedo ainda para colocar a China como o país que tomará esse bastão dos Estados Unidos.

Além disso, tem uma pergunta muito importante ainda não respondida. Se ser o país emissor da moeda padrão é, de fato, um fardo, será que a China estaria disposta a enfrentar esse problema de longo prazo? Se esse abacaxi não for descascado por nenhuma grande economia, terá chegado a vez de uma moeda genuinamente multilateral ou algum criptoativo se encarregará desta tarefa?

Veremos.

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